quarta-feira, 9 de março de 2016

DA LAVOURA A XÍCARA




Por Evanete Peres

Nasci com uma deficiência visual, não enxergo com um dos olhos. Passei pelo que hoje chamam “bulling” na escola. Diziam que eu “fritava o bife e olhava o gato”, o que rendeu muitas brigas e cabeças quebradas.

Quando estudava na universidade, a 400 km de casa, fato raro para uma mulher na década dos anos 1970, levei um tombo de motocicleta que deixou sequelas, me impossibilitando de ter filhos. A solução foi tranquila, encontrei um homem que já tinha dois filhos e que me deu quatro netos.Vivemos juntos há 35 anos eele sempre me incentivou a encarar todos os desafios.

Cursei Publicidade e Propaganda,fiz pós-graduação em Administração de Empresas e atuei nos mercados de São Paulo e Rio de Janeiro, basicamente no terceiro setor. Adoro gente!

A vida agitada e insegura do Rio de Janeiro, e a busca por qualidade de vida nos trouxeram para Araguari onde a minha família produzia café. Não cogitava trilhar esse caminho, mas meu pai colocou uma fazenda de café no meu colo e disse “toma que o filho é seu e você tem cinco anos para aprender a ser cafeicultora”. Grande desafio!

Tão difícil quanto aprender sobre café foi ser aceita e respeitada numa atividade essencialmente masculina e liderar um grupo de colaboradores, quase totalmente composto por homens. Porém, logo percebi que o que era dificuldade poderia se transformar em oportunidade.Num mundo totalmente masculino é mais fácil ser lembrada quando se é mulher. Sem dúvida!

Mais tarde, pela ordem natural das coisas, passei a gerir também a parte de meus pais,além de zelar pela qualidade de vida deles. É quando os pais se tornam filhos e nós filhos, por amor e gratidão nos tornamos pais de nossos pais!

As Fazendas se chamam Paraíso, e quando assumi, a sede era muito feia e triste, sem jardim e sem portão. Entretanto, os negócios iam bem até perdermos quase uma safra inteira numa chuva de granizo. Já tínhamos um jardim e portão, por decisão minha, mas não tínhamos recursos para tocar a próxima safra e, então percebi que os desafios iam além de se ter um belo jardim e um imponente portão.Passamos a depender de crédito bancário. Tornei-me especialista em gestão e em relacionamentos com bancos. Perdi o medo de dever.

Pessoalmente, para agravar a situação, descobri um câncer bastante raro que me custou três cirurgias e vigilância constante. Mas isso não me abateu e avisei o meu médico que, salvo se ele morresse antes, trimestralmente vamos nos ver nos próximos 20 ou 30 anos. O câncer também tem seu lado bom, põe cor na vida, ensina a valorizar tudo e cada momento, e faz a gente ter uma pressa louca de viver!

Mais uma vez tive que me superar e tinha pressa; os negócios não podiam parar e passei a preparar meus principais colaboradores para terem mais capacidade de decisão e me suprir em um eventual problema.

Ninguém sabe tudo e nem faz nada sozinho; se cercar de profissionais especializados é fundamental para se obter bons resultados. Por isso conto com quatro consultores, cada um responsável por uma área de atuação, e a sinergia e o comprometimento dos meus colaboradores são fundamentais. Conto com um grupo enxuto que está comigo há muito tempo e que constroem nossas realizações.

Voltando aos negócios, precisava agir. Decidi buscar a certificação das fazendas visando agregar valor a produção. Fomos precursores de certificações no Cerrado Mineiro e hoje as fazendas têm cinco certificações internacionais.

Tenho hoje a consciência de que a gestão do negócio não se limita “da porteira para dentro”. Gargalos e desafios também estão “da parteira para fora”. Assim é fundamental estar constantemente antenada com tudo o que acontece a nossa volta, como por exemplo, os aspectos políticos, econômicos, legais, sociais, tecnológicos e ambientais.

Sempre me preocupei em acompanhar às necessidades de mudanças tecnológicas e assim, decidi modernizar os equipamentos eadotei ações sustentáveis como, o uso racional da água na irrigação,a reciclagem do lixo e o monitoramento de matas e dos animais silvestres.Hoje temos também um campo experimental visando buscar as melhores variedades adaptadas para a Região do Cerrado.

Desenvolvi um projeto social com a escola municipal de ensino básico que fica próximaà fazenda. A escola éfrequentada por filhos dos meus colaboradores e de colaboradores de outras propriedades, alémdefilhos de pequenos produtores do entorno. Oprojeto chamado “Sementes do Futuro” consiste na valorização do homem do campo e sua nobre tarefa de alimentar o mundo, cuidados com meio ambiente, higiene e saúde, técnicas de manejo da cultura do café,garantindo a sustentabilidade e o fortalecimento dos valores das famílias rurais.


Entendendo a complexidade do setor, bem como as oportunidades que ele oferece,sou parte da Diretoria da Coocacer-Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado-Araguari, onde armazeno, preparo e comercializo o que produzo.Assim atuona parte intermediária da cadeia café e visando completar essa cadeia, criei com mais três sócios a Nuance Cafés Especiais, uma torrefação com foco em qualidade.

Tenho outras atividades como: Conselheira Administrativa da Federação dos Cafeicultores da Região do Cerrado Mineiro, desde o seu início. Além disso, sou Diretora da Associação Comercial de nossa cidade e participei da criação e da organização, pornove edições, da FENICAFÉ, até hoje, um dos maiores eventos da cafeicultura brasileira.

Sou membro da WEAmericas - Mulheres Empreendedoras das Américas e do Caribe, desde o início, em 2012. É um grupo criado pelo Departamento de Estado Americano, idealizado pela Sra. Hilary Clinton, com o objetivo de integrar, qualificar e promover a troca de experiências dessas mulheres. Foram escolhidas em média três representantes de cada país. O convite e a escolha partiram do Departamento de Agricultura da Embaixada Brasileira. Sou a única produtora de café da WEAmericas e tenho a honra de poder divulgar a Região do Cerrado Mineiro e sua história de sucesso nesse grupo.

Desenvolvi um projeto que tem como objetivo sensibilizar pessoas de fora da atividade cafeeirae mostrar como é uma fazenda de café, como permanecer num negócio que nem sempre é remunerador, que exige muito investimento, cuidado, trabalho, dedicação e acima de tudo muita paixão.

Recebo grupos de estudantes universitários de vários cursos, visitantes estrangeiros, e a última visita que recebi era de um grupo composto por deficientes visuais, uma experiência fantástica e emocionante. Descrever para eles os equipamentos e os processos da lavoura e da colheita de café de maneiraclara e agradávelfoi um desafio muito gratificante. Não são as limitações que nos dificultam a vida e sim, os limites que nós nos impomos.

Ter seu trabalho reconhecido é o que todo ser humano almeja. Escolhida pelo seu presidente, recebi do CNC-Conselho Nacional do Café, a comenda “Mérito Agropecuário” no ano passado.

Vinte anos atrás, não imaginava que o café me faria tão feliz e realizada, mas não pense que paro por aqui, tenho grandes planos para o futuro. Afinal, nesta atividade, estou presente da lavoura a xícara.

3 comentários:

  1. O mundo precisa de pessoas assim, sempre disposta a superar os desafios e que com suas realizações pessoais melhoram não suas vidas ma sim de todos que estão a sua volta.

    Parabéns...

    ResponderExcluir
  2. O mundo precisa de pessoas assim, sempre disposta a superar os desafios e que com suas realizações pessoais melhoram não suas vidas ma sim de todos que estão a sua volta.

    Parabéns...

    ResponderExcluir